Crítica | Coringa (Joker)


"Sou eu ou o mundo está ficando cada vez mais maluco?"

Com esta frase atemporal dita num determinado momento do filme, você se pergunta: este é uma obra de ficção ou baseada em fatos reais? Tenha certeza que esta pergunta pode ser feita durante toda a exibição.

Coringa (Joker, 2019), de Todd Phillips, é um filme que você precisa assistir, digerir, refletir, conversar sobre e, se possível, assistir mais uma vez para reiniciar todo o processo, tamanha a complexidade apresentada nas pouco mais de duas horas de exibição.

Caminhando totalmente na contra-mão da tsunami de filmes baseados em personagens de histórias em quadrinhos que, nos últimos anos, invadiu os cinemas, Coringa é um drama psicológico extremamente denso que te faz sair do cinema com um peso sobre os ombros.

Tudo no filme é criado para demonstrar uma cidade decadente, suja e com falta de oportunidades para a maioria dos seus cidadãos.


Neste cenário, conhecemos Arthur Fleck (Joaquin Phoenix): homem solteiro que mora apenas com a sua mãe, funcionário de uma empresa de palhaços (destinados para diversas funções em locais diferentes) e que é portador de uma doença conhecida como Afeto Pseudobulbar: distúrbio neurológico em que o estado emocional do portador é desconectado do seu humor verdadeiro, causando assim crises de riso ou choro incontrolável. No caso de Arthur, obviamente, é o riso que o afeta nos piores momentos.

Estranho e até engraçado no começo, as crises de riso vão te deixando nervoso e apreensivo no decorrer do filme. As situações em que elas surgem vão de algo simples, como uma leve situação de stress dentro de um ônibus, até o primeiro momento de choque real no filme (ao qual eu não comentarei para evitar spoilers).

A escalada da tensão é proporcional ao mergulho na psique do personagem principal.

Você lamenta, se entristece, fica com raiva das situações as quais ele é submetido e, por incrível que pareça, se comove e entende as motivações que o levam a fazer as coisas que ele acaba fazendo.

Muito foi dito sobre a influência que isto poderia ter sobre algumas pessoas, incentivando-as a cometer atos de violência inspirados nos acontecimentos do filme. Entretanto, creio que podemos analisar de duas maneiras.

O filme é uma crítica social pesada, abordando fortemente os lados emocional, social e econômico de pessoas ricas em detrimento das menos favorecidas. Você pode usar este aspecto como uma analogia à situação em que muitos de nós vivemos e, dentro dos limites da lei e da ordem, fazer algo a respeito para mudar isso.

Porém, se você, ao assistir, sentiu vontade de fazer literalmente a mesma coisa, o Blog OHM recomenda que você procure uma ajuda profissional. O personagem sofre de um distúrbio que o isola socialmente, causando depressão além de outros males. No cinema , geralmente a solução é muito diferente da realidade. No mundo real, as coisas são um pouco mais complicadas.

Neste momento, cabe um esclarecimento: o Coringa foi, é e sempre será um vilão. Ele não é um anti-herói, ou um Robin Hood moderno. Não! Ele é um vilão! Provavelmente, o maior e mais conhecido vilão do mundo das histórias em quadrinhos.


A abordagem principal do filme é a de demonstrar no que uma pessoa frustrada profissionalmente, oprimida economicamente, afetada psicologicamente e abandonada pelo poder público pode se transformar. Soma-se a isso uma dose já existente de psicopatia, adicionada do momento e situações propícias e temos a receita perfeita.

Phillips mergulhou de cabeça no estudo do personagem e trouxe um lado, para muitos, desconhecido dele. Até mesmo os Wayne são mostrados de forma diferente, principalmente Thomas (Brett Cullen). O aspecto do marido e pai de família que serve de modelo para todos os outros é deixado de lado, mostrando que até mesmo ele pode sim fazer coisas questionáveis.

A cena com o Bruce (Dante Pereira-Olson), apesar de representativa para a construção do personagem, me soou um pouco forçada. Serviu apenas para mostrar o que pode ter sido o gatilho inicial para que ele, Bruce, seja uma pessoa desconfiada de tudo e de todos, confiando apenas naquele que viria a ser o seu pai de criação, Alfred Pennyworth (Douglas Hodge).

Em compensação, uma das melhores cenas é aquela construída ao som de Rock & Roll Part II, de Gary Glitter. Desde o início até o seu encerramento com a já clássica dança nas escadarias, fica nítido o amadurecimento do personagem. Se na primeira vez em que a dança naturalmente surge, você entende que ele finalmente encontrou a sua verdadeira persona e começa a entender qual o seu lugar no mundo, nesta finalmente ele deixa de ser Arthur Fleck para se transformar no Coringa.

Anteriormente, quando o víamos subindo as escadas, sentíamos junto com ele o peso do mundo e de tudo o que ele carregava nas costas. Desta vez não. Ele estava solto, liberto de todas as amarras sociais que o mantinham preso dentro dele mesmo.

Subir as escadas o mantinha para baixo. Descê-las daquela maneira, mostrou a sua ascenção. Não deixa de ser uma piada irônica, não é mesmo?!

Anotem aí: assim como as escadarias na Philadelphia se transformaram em local de "peregrinação" para os fãs de Rocky Balboa, certamente estas (localizadas na altura do 1170 da Shakespeare Avenue, no Bronx em Nova York) serão fruto de visitação constante a partir de agora.


Agora, o que dizer sobre a atuação de Joaquin Phoenix? Qualquer coisa abaixo de magnífico é pouco. A sua linguagem corporal, as suas expressões, o seu tom de voz, tudo muda durante o processo. O Arthur Fleck do começo, inexiste no Coringa mostrado no final. Definitivamente, Phoenix é o dono do filme!

Duas cenas específicas me causaram muito desconforto (sem muitos detalhes para, mais uma vez, não estragar a sua surpresa): a do anão e a do sorriso.

Na primeira, risadas surgiram na plateia. Entretanto, o choque do que ocorreu antes de surgirem os tais risos foi tão forte que eu não consegui entrar no clima cômico.

Já a segunda... O que dizer sobre ela?

Esta cena será lembrada por muitos e muitos anos como uma das mais fortes, inesperadas e impactantes do cinema. A construção do clímax, juntamente com a trilha sonora (outro ponto extremamente positivo do filme) e a espetacular atuação de Phoenix, fizeram desta, de longe, a melhor do filme.

Novamente, você entende as motivações dele e das demais pessoas que compõem a cena. Pessoas revoltadas tendem a se unir em volta daquele que, diferente dos demais, sai da caixinha e demonstra a sua indignação perante ao mundo que o oprime.

O que me assusta é saber que estamos num grau tão distorcido da realidade ao ponto de as pessoas do filme, e infelizmente, alguns do mundo, real vislumbrarem esta inspiração num assassino psicopata.

Isto diz muito sobre a nossa sociedade em geral e atual estado da humanidade.

Passeando por referências dos quadrinhos (A Piada Mortal, O Cavaleiro das Trevas), bat-filmes pregressos (existe uma cena onde claramente ocorre uma homenagem à Heath Ledger) e até mesmo à Série dos Anos 60, o filme extrapola o bat-verso e bebe em outras fontes, por exemplo, Taxi Driver e Clube da Luta.

Coringa ultrapassa a barreira dos filmes baseados em histórias em quadrinhos e traz um estudo sobre a sociedade como um todo.

Denso. Reflexivo. Opressor. Triste. Revoltante. Violento. Real.

Esqueça o tom leve. Esqueça a diversão. Esqueça a aventura.

Coringa chegou para mudar o patamar deste estilo de filme, para muitos, já batido nos cinemas.

O que Heath Ledger e Christopher Nolan fizeram a 11 anos atrás em Batman - O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008), Joaquin Phoenix e Todd Phillips repetiram agora.

A barra, mais uma vez, foi aumentada.

Cabe aos outros correrem atrás.

Comentários

  1. Tive uma perspectiva totalmente diferente da cena das escadas...pra mim é o oposto de ascensão, mostra um homem que perdeu tudo e ele dança livremente porque nao tem mais amarras de comportamento, mas logo entra uma música densa e tem o outro lado, que tudo perde o sentido, inclusive a vida, e agora ele está pronto pra qualquer coisa, inclusive morrer.

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  2. Excelente ponto de vista! O bom deste filme é que ele deixa as coisas em aberto. Cada um interpreta de uma maneira diferente. Isto deixa o filme vivo.

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